Tomás de Aquino: Questões Discutidas Sobre a Verdade Pergunta 10: Existirá alguma coisa falsa?

 


INTRODUÇÃO

  • Continuando a falar sobre estas Questões Discutidas sobre a Verdade é importante destacar que elas foram escritas nos âmbitos de debates da Universidade de Paris no século XIII.
  • A mecânica do debate consistia no seguinte: um problema é posto em forma de questão; em seguida são apresentados argumentos contra e a favor, geralmente de autoridade. Os argumentos negativos, isto é, contrários à determinação ou resposta final são apresentados em primeiro lugar. 
  • O objetivo de se colocar os argumentos contrários em primeiro lugar é o de esclarecer melhor em que consistia o problema posto pela questão; por isso, na dinâmica da disputa e mesmo na leitura que hoje fazemos dessas disputas é melhor ater-se a essa ordem para melhor compreensão. Após a apresentação dos argumentos vem a determinação da questão, que é o momento em que o mestre apresenta a sua resposta. 
  • O objetivo de se colocar os argumentos contrários em primeiro lugar é o de esclarecer melhor em que consistia o problema posto pela questão; por isso, na dinâmica da disputa e mesmo na leitura que hoje fazemos dessas disputas é melhor ater-se a essa ordem para melhor compreensão. Após a apresentação dos argumentos vem a determinação da questão, que é o momento em que o mestre apresenta a sua resposta. 
  • Em seguida, deve-se responder aos primeiros argumentos, contrários à solução; é um momento delicado, em que o mestre deve manejar os textos aduzidos como argumentos de autoridade e, sempre que se tratarem de textos sagrados ou de autoridades, procurará harmonizá-los, fazendo desvanecer aparentes contradições.
  • Existirá alguma coisa falsa?

Desta forma a pergunta segue o seguinte esquema:
I- Tese
II- Contratese
III- Resposta à Questão Enunciada
IV- Resposta aos Argumentos da Tese
V- Resposta aos Argumentos da Contratese

  • I — TESE: PARECERIA NÃO HAVER NADA QUE SEJA FALSO.
  • Segundo Agostinho, no livro dos Solilóquios, verdadeiro é aquilo que é. Logo, falso é aquilo que não é. Ora, aquilo que não é, não é coisa alguma. Logo, nada existe que seja falso.
  • (...) Além disso, a verdade é a conformidade da coisa com o intelecto. Ora, todas as coisas estão em conformidade com a inteligência divina, visto que nada pode ser em si diferente do que é na inteligência divina. Logo, todas as coisas são verdadeiras, e consequentemente nada é falso.
  • COMENTÁRIO
  • Estes dois argumentos destacados são da seguinte ordem: Primeiro: Aquilo que é verdadeiro por natureza tem essência, ou seja, possui identidade, portanto, existe ; entretanto, o falso como é contrário à verdade não deve possuir existência, seguindo assim o Princípio da não contradição enunciado primeiramente por Heráclito.
  • Segundo: Que todas as coisas estão em conformidade, correspondência com o intelecto (entendimento); e Aquino vai mais longe como bom medievalista, que se considera antes de tudo teólogo, que nada escapa ao intelecto divino, se o falso não está em conformidade com o entendimento do criador este é não existente.

 

  • Além disso, afirma Agostinho no livro Sobre a Verdadeira Religião: "Todo corpo é um corpo verdadeiro e uma unidade falsa". Afirma ser uma falsa unidade, pelo fato de o corpo imitar a unidade, sem chegar a constituir uma verdadeira unidade. Ora, já que toda coisa criada, em qualquer uma das suas perfeições, imita a perfeição de Deus e no entanto dista infinitamente dela, parece que toda criatura é falsa.
  • Comentário
  • Estes dois argumentos essencialmente retirados de duas obras do patrístico Santo Agostinho de Hipona se resume assim:
  • Sendo o criador perfeito e habitante do mundo celestial ( o que corresponderia em Platão no mundo das ideias), tudo que ele fez é apenas cópia do que há perfeito em seu intelecto (que está no âmbito do mundo das ideias), então sendo toda criação cópia do perfeito que está na divindade, esta cópia portanto sendo imperfeita ( o que corresponde no platonismo ao mundo sensível) é enfim falsa.
  • Logo tudo que é criado é falso, pois só o próprio criador é verdadeiro. De fato, se vê aqui um verdadeiro ensino  platônico
  • III — RESPOSTA À QUESTÃO ENUNCIADA.
  • Assim como a verdade consiste na conformidade da coisa com o conhecimento, assim a falsidade consiste na não conformidade entre o conhecimento e a coisa. Ora, a coisa (objeto do conhecimento) é comparada tanto com a inteligência divina como com a humana, segundo expusemos acima. Em relação com o intelecto divino, a coisa é comparada como o elemento comensurado [medido] com o seu critério comensurante [medidor] , no que concerne ao que é predicado [atribuído uma qualidade] positivamente das coisas ou ao que nelas se encontra. Pois todas estas coisas procedem do plano criador do espírito de Deus.
  • A coisa é também comparada com a inteligência divina como o elemento conhecido com o elemento cognoscente. Nesse sentido, as próprias negações e defeitos estão em conformidade com a inteligência de Deus, visto que Ele conhece todas essas deficiências, embora não sendo Ele a causa das mesmas. (...)

(...) Quando, porém, as coisas são comparadas com a inteligência humana, então, sim, verifica-se por vezes uma desconformidade entre a coisa e o conhecimento, discordância que de certo modo é causada pela própria coisa. Com efeito, a coisa provoca na inteligência um conhecimento de si mesma, através daquilo que dela aparece externamente, visto que o nosso conhecimento começa pelos sentidos, cujo objeto natural são as qualidades sensíveis. (...)Todavia, se é verdade que a própria coisa é causa da falsidade gerada na alma humana, não é verdade que o seja por necessidade, como se a coisa gerasse necessariamente o juízo falso da nossa inteligência. Com efeito, tanto a verdade como a falsidade têm a sua sede antes de tudo no julgamento dado pela inteligência.

[Resposta final] : Em consequência, em si (...) toda coisa é verdadeira e nenhuma é falsa.
Conforme as circunstâncias, porém (...), isto é, com referência ao nosso intelecto, certas coisas se denominam falsas.

  • Comentário
  • Nesta parte Aquino primeiro define verdade na sua relação com a conformidade com o intelecto e a falsidade em sua inconformidade;  após coloca os termos em relação com o intelecto divino , assim a chamada coisa que é examinada é confrontada como verdadeira ou falsa em termos de “elemento cognoscente” já que a coisa por ser conhecida pelo divino tanto em virtudes quanto em defeitos , não possui falsidade já que possui existência, mas Deus não é causa dos defeitos da coisa.

Assim a conclusão está justamente em que na inteligência humana a falsidade é definida como algo fora de conformidade com o entendimento humano; mas no intelecto divino não há falsidade.

  • IV — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA TESE.
  • A definição "Verdadeiro é aquilo que é" não exprime com perfeição o conceito de verdade, mas apenas de maneira, digamos assim, material, enquanto o ser significa a afirmação da proposição, ou seja: verdadeiro é aquilo que se denomina e se conhece tal como realmente é.
  • (...) Uma coisa se denomina falsa na medida em que tende a enganar. Quando digo enganar, tenciono expressar alguma ação que inclui deficiência. (...) . Por isso, quando digo enganar, se isto se referir à ação, tem a sua origem da semelhança; se, porém, se referir à deficiência, na qual consiste formalmente o conceito de falsidade, provém da dessemelhança. É por esta razão que, no livro Sobre a Verdadeira Religião, Agostinho afirma que a falsidade se origina da dessemelhança.
  • Comentário
  • Aqui Tomás de Aquino, quer dar uma definição a partir do intelecto humano de que a falsidade é falta de semelhança com aquilo que é verdadeiro.
  • Em outras palavras é algo que tenciona trazer engano. E está ligada a ideia de deficiência que contrasta com perfeição.
  • V — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA CONTRATESE.
  •  A inteligência não costuma ser enganada por toda e qualquer semelhança, mas apenas por uma grande semelhança, na qual a dessemelhança é dificilmente identificável. Conforme a semelhança for maior ou menor, a inteligência se equivoca segundo a capacidade maior ou menor que tem de discernimento para descobrir a semelhança. Tampouco se deve considerar falsa uma coisa que pode induzir a um erro insignificante, mas apenas uma coisa que tende a induzir ao erro muitas pessoas, e pessoas sábias. Ora, as coisas criadas, embora tragam em si mesmas certa semelhança de Deus, todavia apresentam também dessemelhanças muito grandes em relação a Deus, de modo que a semelhança só pode induzir ao erro pessoas muito tolas.
  • (...) Consequentemente, a invocada semelhança e dessemelhança das coisas criadas em relação a Deus não autoriza a concluir que todas as coisas criadas devam denominar-se falsas. (...) Segundo o Filósofo, [Aristóteles]  no livro III da Ética, a verdade é a meta e o primeiro valor da inteligência, visto que esta só é perfeita quando o que ela concebe é verdadeiro. Ora, já que a enunciação é a expressão do conhecimento da inteligência, por isso a verdade constitui o seu fim. Nas outras coisas, porém, não é assim. Logo, deve-se negar a paridade invocada no argumento. O fato de uma coisa não cumprir cem por cento o fim para o qual existe, não autoriza a denominá-la falsa.
  • Comentário
  • Destaca-se aqui que o processo do engano só é significativo quando algo não pode ser discernido corretamente pela inteligência humana, e isto varia individualmente. O engano só pode ser chamado, segundo Aquino, de algo falso na medida em que tem a capacidade de enganar muitas pessoas inclusive sábios.
  • Assim, utilizando a argumentação de Aristóteles, Tomás de Aquino conclui falando que  a falta de semelhança das coisas em relação a Deus não as autoriza serem falsas. Já que elas não tem obrigação de serem perfeitas como o divino é, apesar da finalidade das coisas serem chegar a verdade, isso não autoriza serem falsas.

Implicações

  • 1- Imperfeições não implicam falsidade. Portanto, não é porque as pessoas falham conosco que elas sejam necessariamente falsas.
  • 2- Em última análise tudo que existe diferente do criador , tem sua beleza própria e é verdadeiro, portanto, em tudo podemos nos equivocar, então estejamos prontos a aprender com nossos erros.
  • 3- A verdadeira essência da falsidade e do erro são os resultados em relação ao nosso próximo, enganar traz consequências que no final ferem antes de tudo a nós mesmos
  • AMATE VERITATEM IN OMNI TEMPUS ET PACEM OMNIBUS PERSEQUATE.
  • •Amai vós a verdade em todo o tempo, e segui vós a paz com todos.
  • REFERÊNCIAS BIBLIOGRPÁFICAS
  • STO. TOMÁS E DANTE Vida e Obra, São Paulo: Nova Cultural, 1988.
  • —BATISTA, William Memória da Ausência – os séculos de elaboração do discurso sobre o mistério, Rio de Janeiro: Letra Capital, 2011.
  • —GEISLER, Norman & Paul D. Feinberg Introdução a Filosofia, uma perspectiva cristã, Tradução: Gordon Chown, São Paulo Vida Nova, 1983.
  • —GILSON, Étienne Por que São Tomás Criticou Santo Agostinho?/ Avicena e o Ponto de Partida de Duns Scotus, tradução: Tiago José Risi Leme. São Paulo: Paulus, 2010.
  • —GONZALEZ, Justo L. Uma História do Pensamento Cristão, vol 2. De Agostinho às Vésperas da Reforma, Tradução: Paulo Arantes, Vanuza Freire de Mattos. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
  • —KENNY, Anthony Nova História da Filosofia, São Paulo: Loyola, 2008.
  • —PLANTINGA, Alvin Deus, a Liberdade e o Mal tradução: Desidério Murcho, São Paulo: Edições vida Nova, 2012
  • —ROSSET, Luciano & Roque Frangiotti Metafísica: Antiga e Medieval, São Paulo: Paulus, 2012.

 




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